O Sistema Político Do Islam

Introdução

Sendo a concepção islâmica da vida uma coordenação entre o corpo e a alma, era natural que um relacionamento muito íntimo se estabelecesse entre a religião e a política entre a mesquita e o palácio do governo. Em sua concepção social, o Islam é "comunal".  

 Ele prefere uma vida social, exige a oração coletiva e congregacional, durante a qual todos se voltam na mesma direção (a da localização da Kaaba), o jejum conjunto e simultâneo em todo o mundo, e a visitação da Casa de Deus (a Kaaba) como um dos principais deveres de todos os muçulmanos, homens e mulheres.

Enfatiza a responsabilidade estritamente pessoal, e não se descuida do desenvolvimento do indivíduo, ao mesmo tempo que organiza todos os indivíduos numa única e integral comunidade muçulmana. A mesma lei regula as atividades de todos, independente de classe ou país; e, como veremos, todos os fiéis do mundo juram fidelidade ao mesmo chefe, o Califa.


Nacionalidade 

Na sociedade humana constataram-se, em revezamento, duas tendências contraditórias: a centrípeta e a centrífuga, Por um lado, indivíduos diferentes se agrupam por meio do casamento, famílias, tribos, cidades-estado, estados e impérios, às vezes voluntariamente, outras por compulsão.

Por outro lado, descendendo do mesmo casal e ancestrais, grupos se destacam de unidades maiores para levarem vidas separadas e independentes, distantes de seus parentes; e esta separação é ocasionada às vezes amigavelmente, para desenvolver meios de vida em outro lugar e assim aliviar a carga sobre alguma localidade que tinha dificuldade em prover subsistência para todos, enquanto que de outras vezes, tais separações são ditadas por paixões, disputas e vários outros motivos.

 Apesar do conceito quase unânime de que todas as raças humanas têm a mesma origem em comum, dois fatores têm contribuído poderosamente para acentuar a diversidade: a morte e a distância. O homem está instintivamente ligado à parentes e ancestrais, porém este fator de união desaparece com a morte do parente em comum; e a noção do relacionamento entre os membros sobreviventes, cujo número se multiplica diariamente, tem uma importância que se torna gradativamente cada vez menos eficaz.

No que diz respeito à distância, ela não somente nos faz esquecer os elos de relacionamento, mas também, como a história tem mostrado, cria obstáculos insuportáveis. Paramos de falar a mesma língua, de ter os mesmos interesses ou de defender os mesmos valores.

Quando surgia o Islam, no 7º século da era cristã, as diferenças e preconceitos de raça, língua, local de nascimento e outras causas, eram a regra em vez de exceção; tão enraizadas se tornaram tais noções que se instituíram quase que como instintos naturais. Era assim por toda parte do mundo, na Arábia, na Europa, na Ásia, na América e alhures. O Islam começou por classificar essas noções como características negativas da humanidade, tentando trazer-lhes uma cura.

Os laços unificadores de família, de clã, e até de tribo, provaram-se fracos demais para servir às necessidades de defesa e segurança de um mundo onde o egoísmo e cobiça haviam gerado guerras inevitáveis de todos contra todos os demais. Às vezes, criavam-se grupos maiores pelo uso da força por guerreiros e imperadores. Fracassando, porém em criar uma identidade de interesses entre a totalidade de seus súditos, estas uniões artificiais estavam constantemente ameaçadas de desintegração.

Sem nos envolvermos com a história de milhares de anos de evolução desse aspecto da sociedade humana, seria suficiente notarmos que no nosso próprio tempo, a idéia do nacionalismo ilustra claramente este ponto. Se a nacionalidade se baseia na identidade da linguagem, da raça ou do lugar de nascimento, é evidente que fará com que o problema dos estrangeiros persistirá infindavelmente, e tal nacionalidade será por demais restrita, jamais chegando a englobar o mundo todo; e se os estrangeiros não são nem assimilados, sempre haverá o risco de conflitos e guerras. Aliás, o liame da nacionalidade não é de modo algum um vínculo seguro. já que dois irmãos podem ser inimigos um do outro, enquanto que, dois estranhos, possuidores de uma ideologia em comum, serão amigos.

O Alcorão rejeitou qualquer forma de superioridade derivada da língua, cor da pele ou de qualquer outra incidência inescapável da natureza, reconhecendo a superioridade de indivíduos somente com base na devoção. Uma ideologia comum a todos é a base da "nacionalidade" entre os muçulmanos, e o Islam é essa ideologia.

Não falaremos de religiões que não admitem conversão. Entre as religiões de aplicação universal, o Islam se distingue pelo fato de não exigir a renúncia ao mundo, mas insistir no crescimento e operação simultânea do corpo e da alma. O passado demonstrou que os muçulmanos assimilaram este ideal supra-racial e supra-regional de irmandade; e que este sentimento é uma força viva que existe entre eles até os dias atuais.

A naturalização é uma alternativa hoje admitida pelas nações, mas para se naturalizar em um novo idioma, em uma nova cor de pele, e numa nova terra, não é tão fácil quanto o é aderir a uma nova ideologia. Para os outros, a nacionalidade é essencialmente um acidente inevitável da natureza; no Islam, é uma coisa que depende exclusivamente da vontade e arbítrio do indivíduo.


Meios de Universalização 

Além dos meios já mencionados, ou seja, a existência de uma mesma lei para todos uma única direção em que se voltar nas orações, o mesmo lugar de encontro na peregrinação universal etc., a instituição do Califado universal tem um papel muito especial.  

O Profeta Muhammad (que a Paz e Bênção de Deus estejam sobre ele), de memória extraordinária, proclamara-se mensageiro de Deus, enviado à totalidade dos seres humanos e também o último de tais mensageiros, para todos os tempos, até o fim do mundo. Seus ensinamentos aboliram as desigualdades de raça e classe. Além do mais, o próprio Profeta exercia todos os poderes, espirituais como seculares e outros, na comunidade que ele organizara como estado e a dotou de todos os seus organismos.

Essa acumulação de poderes foi passada como herança, após a sua morte, aos seus sucessores no estado, com a diferença de que esses sucessores não eram profetas, e portanto, não recebiam revelações Divinas. O Profeta Muhammad (que a Paz e Bênção de Deus estejam sobre ele), havia sempre insistido sobre a necessidade da vida comunitária, a ponto de ter declarado que:  "aquele que falecer sem conhecer seu Imam (califa), morre pagão”.

Ele também insistia na unidade e solidariedade da comunidade muçulmana, dizendo que: "aquele que dela se distancia vai para o Inferno”. 

Mesmo no tempo em que o Profeta vivia, havia indivíduos e até grupos de muçulmanos, que viviam voluntariamente, ou sob compulsão, além das fronteiras do Estado Islâmico, por exemplo, na Abissínia, e em Makkah (antes da conquista desta pelo Profeta). Algumas das regiões não-muçulmanas desconheciam a tolerância religiosa, e perseguiam a cidade-estado de Madina (como Makkah e o Império Bizantino). Outras, como a Abissínia cristã, praticavam uma política liberal em assuntos da consciência.

 Como acabamos de ver, o califa herdou do Profeta o exercício do poder duplo, espiritual-secular, e presidia a celebração dos cultos de oração na mesquita, ao mesmo tempo que era o chefe do estado nos assuntos seculares.

 Em reconhecimento do Profeta, costumava-se jurar fidelidade (baia, ou pacto de obediência); fazendo-se o mesmo perante os califas no momento em que estes eram eleitos. A base da organização estatal é um pacto convencionado entre o governante e os governados.

Na prática, somente as pessoas que são as mais representativas da população, prestam esse juramento de aliança. Tal nomeação sob pacto implica, é claro, na possibilidade de anulação do pacto e deposição do governante pelas mesmas personalidades representativas.

 Foi em virtude de ser o mensageiro de Deus, que o Profeta Muhammad (que a Paz e Bênção de Deus estejam sobre ele), dirigiu sua comunidade; e a lei que ele promulgou e deixou para a posteridade foi igualmente de inspiração Divina. A soberania de Deus continuou a existir para os seus sucessores, como uma realidade, na esfera da competência deles; pois aí eles eram os sucessores do Profeta de Deus.

Mas para eles não existia qualquer possibilidade de receber revelações Divinas; e assim seus poderes em matéria de legislação foram limitados; eles não podiam revogar as leis estabelecidas pelo Profeta em nome de Deus; podiam, entretanto, interpretar essas leis, e legislar nos casos em que a lei do tempo do Profeta era silente.

Em outras palavras, o Califa não podia ser um tirano, pelo menos em matéria de legislação; ele é um líder constitucional, e tão sujeito às leis do país quanto qualquer outro habitante comum do Estado. A tradição criada pelo próprio Profeta é responsável pelo fato de que o chefe do Estado Muçulmano não podia ficar acima da lei; e a história mostrou que os califas podiam ser sempre intimados, mesmo pelo mais humilde dos súditos, e também pelos não-muçulmanos, a aparecer nos tribunais do país desde os tempos de Abu Bakr (o primeiro Califa) até os nossos dias.

 A teoria e a prática do califado não tem, entretanto, sido sempre as mesmas na sociedade muçulmana, será útil um rápido esboço dessa história, para melhor compreensão da posição atual.


O Califado 

O Alcorão fala de reis, tanto bons como maus, mas jamais fala de outra forma de governo, tal como uma república. O fato de ter havido divergências de opinião, por ocasião da morte do Profeta, mostra que ele não havia deixado instruções categóricas e precisas para a sua sucessão. Certos grupos desejavam que o poder estatal permanecesse, por hereditariedade, na família dele; e como ele não havia deixado nenhum herdeiro homem, seu primo 'Ali era o parente mais próximo que o sucederia.

Outros desejavam uma eleição "ad hoc" individual; e nesse grupo, havia divergência quanto ao candidato a ser escolhido. Uma maioria organizou-se em favor de uma eleição. A forma de governo assim instituída ficou no plano intermediário entre uma monarquia hereditária e uma república; o califa foi eleito para um mandato vitalício.

Se o fato da eleição a tornou semelhante a da república, a duração do poder era igual ao de uma monarquia. Desde o começo tem havido dissidências aos califas eleitos; mais tarde houve até pretendentes rivais que causaram, algumas vezes, derramamento de sangue na comunidade.

Tempos mais tarde, o poder foi mantido por uma dinastia. Desse modo, os Omíadas foram substituídos pelos Abássidas; estes últimos não conseguiram obter a adesão da longínqua província da Espanha, onde dinastias independentes de governantes muçulmanos detinham poderes soberanos, sem, entretanto, jamais ousarem adotar o título de "califa". Foram necessários mais dois séculos até que o mundo muçulmano viesse, a saber, a multiplicidade de califas em Bagdá, Córdoba e no Cairo (Fatimidas).

Os Turcos, ao se converterem ao Islam, introduziram um fator novo. Primeiramente, eles forneceram soldados e em seguida comandantes que se transformaram no verdadeiro poder de governo do Estado. Lado a lado com os califas, apareceu um "comandante dos comandantes" e mais tarde um "sultão", e a autoridade do Estado tornou-se dividida e a administração ficou nas mãos do Sultão que governava em nome do Califa.

Isto gerou ganância e suscitou invejas; diversos príncipes tornaram-se independentes, produzindo "dinastias" de governadores, os quais, por sua vez, eram substituídos por outros aventureiros; e o Califa não tinha opção se não de ratificar os fatos consumados onde quer que tal acontecesse.

O califado do Cairo foi o primeiro a desaparecer; e este reino foi assumido por uma dinastia de governadores turco-curdos, que reconheceu o califado de Bagdá. Quando este foi devastado por tártaros pagãos, a sede do califado foi transferida para o Cairo. Mais tarde os turcos Otomanos conquistaram o Egito, e aboliram a dinastia neo-Abássida de califas dali.

Após algum tempo, o califado espanhol rendeu-se aos conquistadores cristãos, e reconstituiu um califado no Marrocos. A Istambul dos turcos, e a Delhi dos Mongóis também pretenderam o califado; entretanto, por maiores que os seus impérios chegaram a ser, suas pretensões foram reconhecidas somente nos limites dos seus respectivos domínios. Antes desses dois houve pelo menos uma reivindicação de a qualificação obrigatória para o Califa ser um coraixita isto é, um descendente dos árabes de Makkah do tempo do Profeta.

Nem os turcos nem os mongóis preenchiam esta condição, mas voltaremos a esse ponto mais adiante. Os mongóis foram destituídos do poder na índia pelos ingleses; o califa turco de Istambul foi mais tarde deposto pelos seus próprios súditos, os quais não só escolheram uma forma republicana de governo, como nem conservaram a dignidade do califado para o chefe do estado.

Os poderes e privilégios do califa foram nominalmente confirmados pela Grande Assembléia Nacional, não sendo, entretanto, o posto, nem reivindicado nem desempenhado por eles. O último califa turco Abdulmajid II, o 100º  depois do Profeta, morreu no exílio como imigrante em Paris. Nesse meio tempo, o califado do Marrocos tornou-se um protetorado da França.  

Cabem aqui algumas observações que nos surgem em relação a tudo isto. O Profeta vaticinou que, depois dele, o califado só continuaria por trinta anos, e de que passado esse tempo, seguir-se-ia um reinado ‘’mordaz". Outra fonte atribui ao Profeta o dito no sentido de que o califado pertence à tribo de Coraix. O contexto dessa última orientação é desconhecido; mas o que o próprio Profeta praticou não parece confirmar

 o caráter obrigatório de tal qualificação. Pois a história mostra que desde a sua chegada em Madina, e a criação da cidade-estado naquela localidade, o Profeta deixou sua metrópole pelo menos umas 25 vezes, em expedições militares para defender o território estatal como também em viagens de propósitos pacíficos (como a peregrinação). Em todas essas ocasiões, ele nomeou sempre um vice-regente em Madina, porém não era nunca a mesma pessoa que ele escolhia para desempenhar esse governo interino. Encontramos entre esses vice-regentes chamados de khalifa ou califa, madinenses, coraixitas, quinanitas e outros; houve até um deles que era cego.

Ao tempo de sua última viagem, quando ele empreendeu a peregrinação, três meses antes de sua morte, era uma pessoa cega que ficou como "califa" na metrópole. Outro ponto a ser notado é o de que, quando da eleição de Abu Bakr como califa, havia uma proposta para um governo conjunto, com dois califas funcionando simultaneamente. Por razões práticas, essa proposta foi rejeitada. É, entretanto, uma das formas possíveis de governo muçulmano, unia vez que é reconhecido pelo Alcorão, que se refere a Aarão como associação de Moisés no poder do estado, e porque esta forma foi preservada pelo próprio Profeta no Omã, onde Jaifar e 'Abd, que governavam juntos, haviam-se convertido ao Islam.  

O Califa universal não existe hoje em dia entre os muçulmanos; entretanto, as massas continuam a aspirar por isso. A existência muito independente dos muçulmanos é por demais sujeitas a reconquistas fragmentárias. Antes de restaurar a instituição de um califa universal, é possível que tenham de recorrer aos precedentes estabelecidos no tempo do Profeta, de modo a evitar as rivalidades e suscetibilidades regionais; pode-se vir a ter um "Conselho do Califado" composto pelos chefes de todos os Estados muçulmanos, sunnitas junto com os chi'itas, coraixitas junto com os não-coraixitas; e por rodízio, cada membro poderá presidir o Conselho por, digamos, um ano de mandato.


Deveres do Estado

 Os deveres e funções de um estado muçulmano parecem ser quatro: Executivo (para a administração civil e militar), Legislativo, judiciário e Cultural.

O Executivo não exige um exame muito apurado; é evidente por si só, e válido em qualquer lugar do mundo. A soberania cabe a Deus, e se trata de uma custódia administrada pelo homem, para o bem-estar de todos sem exceção.

Já mencionamos as restrições de competência legislativa existentes na sociedade islâmica, à luz do fato de que nesta existe o Alcorão, Palavra de Deus, que é a fonte de lei para todas as sendas da vida, espirituais bem como as temporais.

No domínio do judiciário, já destacamos a igualdade de todos os homens perante a lei, na qual nem o chefe de estado está isento do mesmo modo que seus súditos. O Alcorão ordenou outra importante disposição: os habitantes não-muçulmanos do Estado Islâmico desfrutam de uma autonomia judicial.

Cada comunidade tendo seus próprios tribunais, seus próprios juízes, administrando suas próprias leis em todas as atividades da vida, tanto cíveis como penais. O Alcorão diz que os judeus devem aplicar a lei da Bíblia, e os cristãos às do Evangelho.

Vale dizer que no caso de conflitos entre as leis, onde as partes de um litígio pertencem a comunidades diferentes, disposições especiais deverão resolver as dificuldades de escolha das leis bem como dos juizes; fazendo com que uma espécie de lei internacional regule tais casos.

 Por dever cultural, queremos dizer da própria razão de ser do Islam, que pretende que somente a Palavra de Deus prevaleça neste mundo. É o dever de cada e de todos os indivíduos muçulmanos, e em conseqüência, do governo muçulmano, não só acatar a lei Divina no comportamento diário, mas também a de organizar suas missões estrangeiras de maneira a dar conhecimento aos outros daquilo que o Islam representa e defende. O princípio básico, como diz o Alcorão, é de que; "Não há imposição quanto à religião”.

  Longe de significar urna letargia e uma indiferença, impõe-se uma batalha perpétua e desinteressada em persuadir os outros da validade do Islam.


Forma de Governo 

O Islam não dá muita importância à forma externa de governo; ele se satisfaz em que o objetivo seja o bem-estar do ser humano em ambos os mundos, e de que seja aplicada a lei Divina.

Assim, a questão constitucional assume um papel secundário, e como já mencionamos, uma república, uma monarquia, uma junta governativa, entre outras formas, são todas válidas na comunidade islâmica.

Se este objetivo é alcançado por um único chefe, é aceito. Se em dado tempo, em determinadas circunstâncias, todas as qualidades necessárias a um "comandante dos fiéis" ou califa, não são encontradas juntas na mesma pessoa, admite-se voluntariamente a divisão do poder também para o melhor funcionamento do governo.

Podemos citar o famoso caso relatado pelo Alcorão:

''Não reparastes (ó Muhammad) nos líderes dos israelitas que, depois da morte de Moisés, disseram ao seu profeta: Designa-nos um rei, para combatermos pela causa de Deus. E ele perguntou: Seria possível que não combatêsseis quando vos fosse imposta a luta? Disseram: E que escusa teríamos para não combater pela causa de Deus, já que fomos expulsos dos nossos lares e afastados dos nossos filhos? Porém, quando lhes foi ordenado o combate, quase todos o recusaram, menos uns poucos deles. Deus bem conhece os iníquos. Então, seu profeta lhes disse: Deus vos designou Saul por rei. Disseram: Como poderá ele impor a sua autoridade sobre nós, uma vez que temos mais direto do que ele à autoridade, e já que ele nem sequer foi agraciado com bastantes riquezas? Disse-lhes: É certo que Deus o elegeu sobre vós, concedendo-lhe superioridade física e moral. Deus concede a Sua autoridade a que Lhe apraz, e é Magnificente, Sapientíssimo.'' (Alcorão Sagrado 2: 246-247)

Certo profeta anterior foi solicitado pelo povo a escolher para eles um rei que governasse junte com ele, de modo que pudessem guerrear sob a liderança deste contra o inimigo que os havia expulsado de seus lares e os separado de suas famílias.

A designação de um rei, na presença de e em acréscimo ao profeta, e até com a intermediação deste último, nos mostra a que ponto  podemos chegar nesta direção. A divisão é desse modo estabelecida entre as funções espirituais e as seculares, sem que se tolere o poder arbitrário de qualquer deles; a política e o rei permanecem tão sujeitos à lei Divina quanto o culto e o profeta.

A fonte da autoridade e os  códigos de leis permanecem os mesmos; somente a aplicação da lei e a execução das necessárias disposições é que cabem a pessoas diferentes. É mais uma questão de especialização do que de separação entre os dois aspectos da vida.


Deliberações Consultivas 

A importância e utilidade da consulta não podem ser suficientemente destacadas. O Alcorão ordena aos muçulmanos repetidamente tomarem suas decisões só depois de recorrer à consulta, seja o assunto matéria pública ou privada.

A prática do Profeta reforçou essa disposição, Pois, apesar da excepcional virtude de ele ser guiado pelas revelações divinas, o Profeta Muhammad (que a Paz e Bênção de Deus estejam sobre ele); sempre consultou seus companheiros, e aos representantes das tribos aliadas, antes de tomar suas decisões.

Os primeiros califas não eram defensores menos ardentes da instituição da consulta.Também a esse respeito, o Alcorão não determina métodos rígidos e precisos.

O número, a forma de eleição, a duração do mandato, etc., são deixados ao critério dos líderes de cada época e de cada país.

O que é importante é que cada um se cerque de personalidades representativas, que desfrutem da confiança daqueles que elas representara, e possuem integridade de caráter.

O Alcorão também falou de um tipo de representação proporcional, quando descrevia a seleção de 70 representantes do seu povo por Moisés (que a Paz esteja sobre ele), a serem recebidos na presença de Deus.

''Então Moisés selecionou setenta homens, dentre seu povo, para que comparecessem ao lugar por Nós designado...'' (Alcorão Sagrado 7:155).


Relações Exteriores 

As relações com países estrangeiros se baseiam naquilo que é atualmente chamado de lei internacional. As regras de conduta nesse setor evoluem muito mais lentamente do que as do comportamento mútuo dentro de um grupo social.

Na antiguidade pré-islâmica, a lei internacional não tinha existência independente; ela fazia parte da política e era dependente da vontade e desejo do chefe do Estado. Poucos  eram os direitos reconhecidos aos amigos estrangeiros, menos ainda para os inimigos.  

Podemos dar relevo ao fato histórico de que foram os muçulmanos que, não somente desenvolveram a lei internacional, a primeira no mundo, como matéria a parte, mas também a integraram à jurisprudência (ao invés de à política). Eles compuseram monografias especiais sobre o assunto, sob o nome siyar (conduta do governante), e também falaram a respeito nos tratados gerais de lei.

Para os que deram origem a estes estudos (do começo do segundo século da Hégira/ 8º século da era cristã), a questão da guerra fazia parte da lei penal. Assim, depois de discutir o banditismo e os assaltos de estrada entre os povos locais, os juristas falaram logicamente das atividades parecidas do estrangeiro, exigindo unia maior mobilização das forças da ordem.

Porém, a inclusão da guerra no capítulo de legislação penal, significa inequivocamente que seus efeitos eram vistos como assunto jurídico, ordem pela qual os acusados tinham o direito de se defenderem perante um tribunal judiciário.  

O princípio básico do sistema de relações internacionais do Islam, no dizer dos juristas, é de que ‘’os muçulmanos e os não-muçulmanos são iguais (sawa) em face dos sofrimentos deste mundo’’. Na antiguidade, os gregos, por exemplo, tinham a concepção de que existia uma lei internacional que regulava as relações somente entre as cidades-estado gregas; quanto aos bárbaros, a natureza os tinha destinado, dizia Aristóteles, a serem escravos dos gregos.

Era, portanto, uma.atitude arbitrária, e não uma lei o que regulava as relações entre eles. Os antigos hindus tinham uma idéia parecida, e o dogma da divisão da humanidade em castas, junto com a noção de intocabilidade, tornava o futuro dos vencidos ainda mais incerto.

Os romanos reconheciam alguns direitos dos seus amigos estrangeiros; mas para o resto do mundo não havia mais que a discriminação e o jugo arbitrário, que mudava conforme a índole ou o humor dos comandantes ou tempos que corriam. A lei judaica acreditava que Deus havia ordenado a exterminação dos amalecidas (habitantes da Palestina); e que ao resto do mundo poderia ser permitido sobreviver desde que pagassem tributos e servissem aos judeus.

Até 1856, os ocidentais reservavam a aplicação da lei internacional aos povos cristãos; e mesmo tendo, desde então, feito uma distinção entre povos civilizados e não civilizados, estes últimos continuam a não ter quaisquer direitos. Na história das leis internacionais, os muçulmanos foram os primeiros - e até aqui os únicos - a admitir os direitos dos estrangeiros sem qualquer discriminação ou reserva.  

O primeiro Estado Muçulmano foi fundado e governado pelo Profeta. Era este a cidade-estado de Madina, uma confederação de vilas autônomas, habitadas por muçulmanos, judeus, árabes pagãos, e possivelmente um punhado de cristãos. A própria natureza desse Estado exigia uma tolerância religiosa, que foi formalmente admitida na constituição desse Estado, documento esse que sobreviveu até os nossos dias.

Os primeiros tratados de aliança defensiva foram feitos com não-muçulmanos, e foram sempre escrupulosamente cumpridos. O Alcorão insiste de maneira enérgica na obrigação de cumprirem-se às promessas feitas e de o fazer com justiça e correção (impondo punições na Outra Vida em caso contrário).  

As diferentes fontes de regra da conduta internacional compreendem não somente a legislação internacional, mas também os tratados com estrangeiros, etc. 

Os juristas tem insistido de tal maneira na importância da palavra empenhada, que dizem que, se um estrangeiro obtém permissão e ingressa em território islâmico, por um período determinado, e se nesse meio tempo ocorrer uma guerra entre o governo muçulmano e o da nação do dito estrangeiro, a segurança deste não pode ser afetada; ele poderá permanecer tranqüilamente até expirar o visto para sua permanência; e não somente poderá retornar a salvo e em segurança para o seu lar, como também levar com ele todos os seus bens e ganhos.

Além do mais, durante sua permanência, desfrutará da proteção das cortes do mesmo modo que lhe era devido antes da guerra. A pessoa do embaixador é considerada imune de toda violação, mesmo que ele seja portador de uma mensagem desagradável. Ele desfruta da liberdade de credo, e segurança de estadia e retorno.

 A questão da jurisdição também comporta certas peculiaridades. Os estrangeiros residentes em território islâmico, estão sujeitos à jurisdição muçulmana, porém não à lei muçulmana, uma vez que o Islam tolera em seu território a multiplicidade das leis, com judiciários autônomos para cada comunidade.

Um estranho estaria, portanto, sob a jurisdição do seu próprio tribunal confessional. Se ele é cristão, judeu ou de outro credo qualquer, e se a outra parte litigante professar a mesma fé e costumes, não importando se esta parte seja súdito do Estado Muçulmano ou outro estrangeiro, o caso será decidido de acordo com as leis próprias dos litigantes.

Quanto aos casos em que os litigantes são de comunidades diferentes, a questão já foi examinada acima. Entretanto, é sempre admissível legalmente a um não-muçulmano renunciar a esse privilégio em favor de um tribunal islâmico, desde que ambas as partes do litígio concordem. Em tal eventualidade, será aplicada a lei islâmica.

É preciso ressalvar que a preocupação com a legalidade forçou os juristas muçulmanos a admitir que se um crime é cometido, mesmo contra um muçulmano, que é sujeito ao Estado Muçulmano, por um estrangeiro num país estrangeiro, e este mesmo estrangeiro posteriormente vier pacificamente a um território muçulmano, ele não será submetido aos tribunais islâmicos, que não têm competência para considerar casos que tenham ocorrido fora do território de suas jurisdições.  

A lei islâmica não admite isenções em favor do chefe do Estado, o qual está tão sujeito à jurisdição dos tribunais quanto qualquer outro habitante do país. Se o chefe do Estado Muçulmano não desfruta de tais privilégios (injustos) em seu próprio país, não temos porque esperar que tais privilégios sejam dispensados a soberanos estrangeiros ou embaixadores. Todo o respeito adequado à qualidade de hóspedes e à dignidade de suas posições' lhes é prestado, mas isto não os coloca acima da lei e da justiça.  

Diversos casos dos tempos clássicos retratam uma outra característica peculiar da justiça islâmica. Reféns eram mantidos por ambas as partes para garantir o cumprimento dos tratados, estipulando-se explicitamente que se uma das partes viesse a assassinar os reféns que foram dados pela outra, à esta caberia o direito de se vingar sobre os reféns que detinha por sua vez.

Este tipo de situação já aconteceu, tendo os juristas muçulmanos entretanto observado unanimemente que os reféns inimigos não poderiam ser executados porque a perfídia e a traição havia sido perpetuada pelo governante deles e não pelas pessoas desses reféns; e o Alcorão proíbe, formalmente que se aplique qualquer punição por delegação ou se inflija represália a quem quer que seja pelo crime de outrem.

A lei muçulmana de guerra é humana. Ela distingue entre os beligerantes e os combatentes; ela não permite a matança dos menores, das mulheres, dos idosos, doentes, nem dos monges; as dívidas em favor dos cidadãos do país inimigo não são afetadas pela declaração de guerra; toda matança e devastação além do mínimo indispensável é proibida; os prisioneiros são bem tratados e seus atos de belicosidade não são considerados criminosos.

Com o objetivo de reduzir as tentações dos soldados conquistadores, o produto de saque não cabe àquele que o toma, e sim ao governo, que centraliza os despojos e os redistribui, na proporção de quatro-quintos aos participantes da expedição e um-quinto para os cofres do governo; as partes de um soldado e do comandante-chefe são iguais e parecidas.

Em interessante trecho, o Alcorão exorta à paz, e diz: 

"Se eles se inclinam à paz, inclina-te tu também a ela e encomenda-te a Deus, porque Ele é o Oniouvinte, o Sapientíssimo”. (Alcorão Sagrado 8:61) 

O Alcorão atribui tal importância à palavra empenhada que não hesita em dar-lhe preferência acima do interesse material da comunidade muçulmana. Assim, ensina-nos a lei islâmica da neutralidade, nos seguintes termos:

"Quanto aos crentes que não migraram, não vos tocará protegê-los até que o façam. Mas, se vos pedirem socorro em nome da religião, estareis obrigados a prestá-lo, salvo se for contra povos que tenhais com eles tratado; sabei que Deus bem vê o quanto fazeis." (Alcorão Sagrado 8:61) 


Conclusão 

Resumindo, o Islam pretende estabelecer uma nova comunidade mundial, com igualdade completa entre os povos, sem distinção de raça, classe, ou nação. Procura converter por persuasão, não permitindo qualquer compulsão a credos religiosos, permanecendo cada indivíduo pessoalmente responsável perante Deus. Para o Islam, governo significa custódia, um serviço, no qual os funcionários são serventes do povo. De acordo com o Islam, é dever de todos os indivíduos fazer um constante esforço para disseminar o bem e prevenir o mal; e Deus nos julga pelos nossos atos e pelas nossas intenções.

Introdução

Nacionalidade

Meios de Universalização

O Califado

Deveres do Estado

Forma de Governo 

Deliberações Consultivas

Relações Exteriores

Conclusão 

 

Fonte: islam.org.br

Deixe um comentário

Está a comentar como convidado. Login opcional abaixo.